Da Tolerância, uma das qualidades fundantes da vida democrática.
Terceira carta
Do assassinato de Galdino Jesus dos Santos –Ãndio pataxó
“Que coisa estranha, brincar de matar Ãndio, de matar gente.
Fico a pensar aqui, mergulhado no abismo de uma profunda perplexidade,
espantado diante da perversidade intolerável desses moços desgentificando-se,
no ambiente em que decresceram
em lugar de crescer.”
Cinco adolescentes mataram hoje, barbaramente, um Ãndio
pataxó, que dormia tranqüilo, numa estação de ônibus, em BrasÃlia. Disseram Ã
polÃcia que estavam brincando. Que coisa estranha. Brincando de matar. Tocaram
fogo no corpo do Ãndio como quem queima uma inutilidade. Um trapo imprestável.
Para sua crueldade e seu gosto da morte, o Ãndio não era um tu ou um ele. Era aquilo, aquela coisa ali. Uma
espécie de sombra inferior no mundo. Inferior e incômoda, incômoda e ofensiva.
É possÃvel que, na infância, esses malvados adolescentes
tenham brincado, felizes e risonhos, de estrangular pintinhos, de atear fogo no
rabo de gatos pachorrentos só para vê-los aos pulos e ouvir seus miados
desesperados, e se tenham também divertido esmigalhando botões de rosa nos
jardins públicos com a mesma desenvoltura com que rasgavam, com afiados
canivetes, os tampos das mesas de sua escola. E isso tudo com a possÃvel
complacência quando não com o estÃmulo irresponsável de seus pais.
Que coisa estranha, brincar de matar Ãndio, de matar gente.
Fico a pensar aqui
, mergulhado no abismo de uma profunda perplexidade, espantado
diante da perversidade intolerável desses moços desgentificando-se, no ambiente
em que
decresceram em lugar de crescer.
Penso em suas casas, em sua classe social, em sua
vizinhança, em sua escola. Penso, entre outras coisas mais, no testemunho que
lhes deram de pensar e de como pensar. A posição do pobre, do mendigo, do
negro, da mulher, do camponês, do operário, do Ãndio neste pensar. Penso na
mentalidade materialista da posse das coisas, no descaso pela decência, na
fixação do prazer, no desrespeito pelas coisas do espÃrito, consideradas de
menor ou de nenhuma valia. Adivinho o reforço deste pensar em muitos momentos
da
experiência escolar em que o Ãndio continua minimizado.
Registro o todo poderosismo
de suas liberdades,
isentas de qualquer limite, liberdades virando licenciosidade, zombando de tudo
e de todos. Imagino a importância do viver fácil na escala de seus valores em
que a ética maior, a que rege as relações no cotidiano das pessoas terá
inexistido quase por completo. Em seu lugar, a ética do mercado, do lucro. As
pessoas valendo pelo que ganham em dinheiro por mês. O acatamento ao outro, o
respeito ao mais fraco, a reverência à vida não só humana mas vegetal e animal,
o cuidado com as
coisas, o gosto da boniteza, a valoração dos sentimentos,
tudo isso reduzido a nenhuma ou quase nenhuma importância.
Se nada disso, a meu juÃzo, diminui a responsabilidade
desses agentes da crueldade, o fato em si de mais esta trágica transgressão da
ética nos adverte de como urge que assumamos o dever de lutar pelos princÃpios
éticos mais fundamentais como do respeito à vida dos seres humanos, à vida dos
outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e das florestas. Não creio
na amorosidade entre mulheres e homens, entre os seres humanos, se não nos
tornamos capazes de amar o mundo. A ecologia ganha uma
importância fundamental neste fim de século. Ela tem de
estar presente em qualquer prática educativa de caráter radical, crÃtico ou
libertador.
Não é possÃvel refazer este paÃs, democratizá-lo,
humanizá-lo, torná-la sério, com adolescentes brincando de matar gente,
ofendendo a vida, destruindo o sonho, in
-viabilizando o amor.
Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela
tampouco a sociedade muda.
Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida
e não da morte, da equidade e não da injustiça, do direito e não do arbÃtrio,
da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outro caminho
senão viver plenamente a nossa opção. Encarná-la, diminuindo assim a distância
entre o que fizemos e o que fazemos.
Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a
vida, explorando os outros, discriminando o Ãndio, o negro, a mulher não
estarei ajudando meus filhos a ser
sérios, justos e
amorosos da vida e dos outros...
Uma página e meia de texto digitado. Duas e meia de
manuscritos. A Terceira carta, as últimas palavras escritas por Paulo,
exatamente no dia 21 de abril de 1997. Nelas analisou, serenamente a “malvadez”
da morte de Galdino, mas com tamanha firmeza, profundidade e clareza de
indignação que poucas vezes senti ou li nos seus escritos.
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